terça-feira, 30 de julho de 2013

Modelo de investigação criminal brasileiro é ineficiente e ultrapassado



O elefante branco da Polícia Federal Brasileira .


Após a Lei 12.830, que dispõe sobre a investigação criminal conduzida pelos delegados, representantes da classe e dirigentes das polícias civis e Polícia Federal têm se ocupado de tema de extrema relevância para a segurança pública: a forma de tratamento a ser dispensada aos ocupantes do cargo.

Sancionada em 20 de junho, cinco dias antes da rejeição pela PEC 37, que restringia o poder do Ministério Público (MP) e garantia o monopólio da investigação aos delegados, a lei assegurou antigo pleito da categoria. Estabeleceu que as funções de Polícia Judiciária e a apuração de infrações penais exercidas pelo delegado de polícia são de “natureza jurídica”.

Previu também que “ao delegado de polícia, na qualidade de autoridade policial, cabe a condução da investigação criminal por meio de inquérito policial ou outro procedimento previsto em lei, que tem como objetivo a apuração das circunstâncias, da materialidade e da autoria das infrações penais”.

A lei também definiu que o cargo de delegado de polícia é privativo de bacharel em Direito, devendo-lhe ser dispensado o mesmo “tratamento protocolar” que recebem magistrados, membros da Defensoria Pública, do MP e advogados. Foi uma espécie de prêmio de consolação, depois da inesperada reprovação da chamada “PEC da impunidade”, atropelada pelas manifestações de rua.

Delegados também comemoraram a conquista de outro anseio da categoria: o tratamento de “Vossa Excelência”. Em 2007, o sindicato dos delegados do Distrito Federal já reivindicava a distinção. No ano passado, o corregedor e alguns outros delegados federais em Minas Gerais também tentaram emplacar o pronome, sob o argumento que o tratamento já era praxe na Polícia Civil.

Na ocasião, até um delegado da PF mineira, em despacho interno, classificou a medida como "vaidades herdadas do período monárquico". Após a repercussão negativa, o então superintendente recuou da decisão, invocando as regras gramaticais do “Manual de Redação da Presidência”.

Há poucos dias, o novo chefe da Corregedoria da PF em Minas Gerais chamou o feito à ordem e orientou os servidores a adotarem a nova forma de tratamento nos modelos de comunicação oficial, agora com fundamento na nova lei. No cotidiano, a maioria de delegados já se dispensa o tratamento de “doutor”, independente de título acadêmico. Alguns se ofendem quando não são bajulados com o salamaleque, comum nos palácios da Justiça.

Antes mesmo do status de excelência, as relações de delegados com os demais servidores de órgão policiais já eram pautadas pela soberba e autoritarismo. O “código de ética” da associação nacional de delegados da PF, por exemplo, considera como conduta a ser evitada pelos seus filiados “promiscuir-se com subordinado hierárquico, dentro ou fora de suas funções”.

O veto do parágrafo que previa a condução da investigação criminal de acordo com o “livre convencimento técnico-jurídico” do delegado tirou um pouco do entusiasmo, mas não chegou a comprometer a pretensão de suas excelências. A lei manteve o indiciamento, como ato privativo do delegado de polícia, por ato fundamentado, mediante “análise técnico-jurídica do fato”. Foram-se os anéis, ficaram os dedos.

A ação em prol do enfraquecimento do MP, para alguns políticos, teve razões inconfessáveis. Para os delegados, que ainda alimentam o sonho de equiparação salarial com magistrados e promotores, os motivos foram meramente corporativista$. Viúvas da PEC 37 ainda lamentam a derrota. O superintendente da PF em São Paulo falou em risco de um quadro de “instabilidade jurídica” no sistema de investigação criminal.

Na maioria dos países, investigação criminal é atividade típica de polícia. No Brasil, assumiu natureza jurídica, por força da lei. No ano passado, em Roma, a ex-inspetora geral da Polícia Nacional da França, formada em artes clássicas, com mestrado em grego e latim, foi eleita presidente da Interpol, por representantes das polícias de 170 países.

O Brasil é um dos poucos países do mundo onde existe o burocrático, ineficiente e arcaico inquérito policial, representado pela figura do elefante branco, que tem sido mostrado nas ruas, em manifestações de sindicatos dos policiais federais. Mas prevaleceu o lobby dos bacharéis de direito, da “polícia de juristas”.

No entanto, vários estudos apontam outras prioridades que deveriam ser a principal preocupação de suas excelências, gestores das polícias e condutores das investigações. De acordo com “Mapa da violência 2013”, que compilou os dados mais recentes sobre o número de vítimas de homicídios no Brasil, em quatro anos (2008 a 2011), 206 mil pessoas foram assassinadas no País.

O relatório também cita pesquisa realizada pela Associação Brasileira de Criminalística, em 2011, que revelou o baixíssimo índice de elucidação dos crimes de homicídio no país, que varia entre 5% e 8%. Nos Estados Unidos, esse percentual é de 65%; na França, de 80% e no Reino Unido chega a 90%.

Dados sobre inquéritos policiais e termos circunstanciados pendentes revelam a situação de falência do nosso modelo de investigação criminal. O último cômputo divulgado pelo Conselho Nacional do Ministério Público, no estudo “MP – Um retrato”, atualizado até abril de 2013, mostrou que dos 5,3 milhões de casos criminais enviados pela polícia ao MP, nos estados e no Distrito Federal, 648 mil (12%) foram arquivados e apenas 589 mil (11%) resultaram em oferecimento de denúncia.
As investigações ainda sem solução, incluindo todos os tipos de crimes, chegam a 4,1 milhões (77%). Em relação aos crimes contra a vida, dos 468 mil inquéritos em instaurados, 25 mil (5,3%) foram arquivados e 35 mil (7%) tinham elementos para embasar denúncias pelo MP.

No âmbito do Ministério Público Federal (MPF), que recebe a maioria dos procedimentos da Polícia Federal, o diagnóstico do CNPM também é assustador. Dos 361 mil casos recebidos, 27 mil (7%) foram arquivados e apenas 12 mil (3%) resultaram em denúncias oferecidas à Justiça.
Se considerados apenas os crimes contra a vida, os números são ainda mais pífios. Dos 1.833 inquéritos recebidos, 114 (6,2%) foram arquivados e só 39 (2%) serviram para embasar denúncias.

Nada menos que 1.680 ainda estão pendentes.

O estudo não informa os percentuais de inquéritos já relatados e dos que se encontram na situação mais comum: o infinito vai e vem, com meros despachos protelatórios e pedidos de dilação de prazo para conclusão. Na PF, muitos deles se arrastam por anos a fio. Alguns vagam por mais de uma década, como fantasmas que assombram vítimas e testemunhas, brindando os criminosos com a prescrição.

São os inquéritos “pingue-pongue”, na expressão cunhada pelo professor Michel Misse, do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflitos e Violência Urbana da UFRJ. Ele coordenou o estudo acadêmico “O inquérito policial no Brasil: uma pesquisa empírica”, realizado e cinco capitais e publicado pela Federação Nacional dos Policiais Federais.

A pesquisa demonstrou o que todos já sabem: o inquérito é instrumento ineficiente do procedimento investigatório, com baixíssimas taxas de elucidação de crimes, que gera burocracia e contradições entre opiniões policiais e jurídicas e sofre interferências políticas.

Pela importância dada à excrescência do emprego do pronome de tratamento para os delegados, com o perdão do trocadilho, fica difícil imaginar patamares de excelência para nosso sistema de investigação criminal, de modo a reverter os vergonhosos índices de violência e criminalidade.


Josias Fernandes Alves é agente de Polícia Federal, formado em Direito e Jornalismo

Revista Consultor Jurídico, 30 de julho de 2013 

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